Nuno Pedrosa
Outubro 2009
Projecto
ISO2768-mH
Sendo certo que a exibição de desenhos do tipo exploratório parece ser algo inapropriado num contexto sensível às particularidades reflexivas desta disciplina, é também verdade que este género tem sido por vezes objecto de exposição graças a uma autoria que lhe é subjacente por afinidade. Se num cenário mais convencional o desenho possui uma posição respeitável ainda que subserviente relativamente a outras práticas artísticas, no contexto actual é cada vez mais valorizado por aquilo que lhe é proprio e não tanto pelas suas qualidades enquanto instrumento de eleição no atelier do artista. Paradoxos de uma disciplina que se confirma num período de dissolução disciplinar, sendo certo ainda que a exibição das vertentes mais claramente industriais se torna possível apenas num contexto de acrescido hibridismo.
Será talvez esse o caso ainda dos desenhos de apresentação. Habituado a algo mais do que simples exercícios de virtuosismo, não poderia ser mais contrária aos apetites do expectador contemporâneo uma exposição constituída unicamente por desenhos desta natureza. Permissível pois no contexto de uma instalação mas difícil de os imaginar isolados numa exposição dedicada exclusivamente à prática do desenho contemporâneo, quanto mais não seja pelo aparente absurdo que a simples aposição do mais puro pragmatismo instrumental num contexto marcadamente reflexivo representa. Sabendo nós de antemão que não seriam menos adversas as reacções a uma exposição de desenhos técnicos, não pode senão surpreender a inclusão nesta exposição de desenhos desta natureza e ainda para mais despidos das habituais astúcias conceptuais!
E para quem pense que uma certa contemporização poderia tornar mais fácil a convivência com estes desenhos, acrescem mais do que nunca as dificuldades que se adivinham uma vez conhecida a sua razão de ser, isto é, o propósito de comunicar com o maior rigor possível a informação confiada, de eliminar toda a irregularidade passível de contaminar um tal exercício. Não se vislumbra pois qualquer ênfase na componente processual, nem mesmo o mais pequeno indício de que o acaso tenha tido aí um papel significativo. Certamente que não é de esperar o imediatismo que o desenho parece por vezes emprestar à expressão mais arrebatada. O mais leve indício de uma componente reflexiva ou mesmo conceptual é igualmente inexistente. Não há pois razões para acreditar que estes desenhos sejam mais do que simples actos ilocucionários do tipo directivo.
Acontece que o desconforto gerado poderá ser bem mais vantajoso do que seria de esperar, em particular numa época marcada pelo esgotamento das possibilidades anunciadas pelo campo expandido da arte, mais reduzidas e previsíveis a cada dia que passa. Poderá muito bem acontecer que, para além da abundância demasiado familiar de práticas interdisciplinares, persista um constrangimento que importa contrariar e que exige de nós um comprometimento de outra natureza. Que este constrangimento esteja na origem das dificuldades encontradas não é de todo surpreendente, mas um tal conhecimento de pouco ou nada nos serve se não se fizer acompanhar de um esforço adicional de ordem conceptual. Será pois no contexto destas dificuldades que se incluem duas séries adicionais de desenhos cujo objectivo final será o dissecar destes problemas, mais concomitantes com uma audiência contemporânea.
A primeira das questões abordadas tem início no modelo digital da peça “Transdutor”, evoluindo eventualmente para uma exploração mais direccionada para os dilemas e possibilidades colocadas pelo desenho assistido por computador. Para uma maior facilidade de compreensão, bastará imaginar a série “Desenho de Transdutor” como instantâneo de um evento único, desdobrado nos seus vários componentes espaciais. A terceira pessoa do singular não é pois sem razão, visto que não há mais do que um único desenho nesta série. Já o conjunto “ISO2768-mH” pode ser entendido como derivação do mise en abyme, sendo que a ressonância dá lugar à distorção em vez de simples cópia do objecto original. Para além das evidências contudo, a verdadeira acção tem lugar quando a implementação de limites encontra os impoderáveis do gesto natural.
Esta mesma interacção de forças está na origem da série algo compulsiva “Paralelismo”, a única nesta exposição a ser produzida integralmente durante o período de residência. O guião não poderia ser mais simples, um número razoável de linhas paralelas são desenhadas em suportes verticais distintos mas semelhantes com intervalos de apenas um milímetro, seguindo um programa estrito de quatro repetições. Exercício de resistência, o grau de dificuldade é acrescido pela verticalidade e dimensão dos suportes ou a ausência de qualquer outro instrumento que não uma simples régua. No que à precisão linear e paralelismo diz respeito, os valores codificados no padrão internacional ISO2768 deverão providenciar a resposta apropriada a factores tais como a fadiga e a descoordenação motora. Outrora desimpedido, o gesto assume aqui uma natureza quantificável, sendo que todo o desvio à norma é mantido dentro de margens de erro mais ou menos manobráveis. É este pois o quanto nos é permitido expandir, uma fracção de um milímetro para cada um dos lados do zero absoluto da expressão.
Nuno Pedrosa, Junho de 09
CV