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É
PROIBIDO DESENHAR NO PAPEL!
Pedro António Janeiro
13 de Abril a 7 de Maio de 2011
Pedro António Janeiro
13 de Abril a 7 de Maio de 2011
É
PROIBIDO DESENHAR NO PAPEL!
“O desenho é um objecto. Desenhar é aumentar o mundo.
Lembro-me de uma criança que desenhava no chão com um pincel e água num pátio de cimento afagado. Com água ia dizendo com linhas e manchas pássaros, casas, paisagens; desenhava o que via; inventava mitologias privadas; apontava para o desenho e dizia “Sou eu”. Quando o desenho era grande, subia a uma nespereira sobranceira ao pátio para ver o desenho de cima. Um dia, deslumbrado com o que via enquanto chamava “eu” àquilo que via, caiu e partiu o braço. No dia seguinte a árvore não estava lá: tinha sido cortada rente à terra. Esta imagem sempre me impressionou.
Lembro-me do Piotr: Piotr era um boneco animado polaco, inteligente, mas muito alegre. O Piotr do cão amarelo, que sempre que enfrentava algum perigo lhe aparecia um duende que lhe emprestava “o lápis mágico”. O lápis com que Piotr desenhava no chão tinha a capacidade de materializar tudo o que Piotr desenhava ou desejava: se um par de asas brancas, Ícaro; se um barco à vela, navegador; se uma praia, náufrago.
Lembro-me dos desenhos feitos com o dedo no sujo dos capots dos carros; nos vidros embaciados.
Lembro-me dos desenhos com uma pedra de giz no negro do asfalto; a mão de um homem impressa ou soprada a ocre nas paredes de Lascaux.
Um desenho al vif, entre outras coisas, é uma espécie de fragmento que eu recorto e roubo à realidade.
Desenhar é um roubar lícito: porque aquilo que o desenho rouba, devolve-o ele próprio em dobro, ou em mais, à realidade roubada. O produto do meu saque é mais um objecto no mundo: o meu desenho é o meu roubo e a minha entrega. Digo que tiro, mas sei que dou.
Se desenho sobre um papel, roubo e trago a realidade roubada debaixo do meu braço.
Interessante seria se esse desenho que faço daquilo que digo que vejo fosse abandonado na própria cena do crime; se esse desenho, que é mais um objecto no mundo, fosse alimentar essa realidade que consente ser roubada pelos olhos (para que os outros quando a vissem, a vissem também através de um seu desenho; ou, se a desenhassem, a desenhassem desenhando também o meu desenho) – isto no caso do suporte escolhido ser uma superfície imóvel como uma parede, o asfalto, o vidro de uma janela, etc; ou ainda, de um outro modo, interessante seria, se o suporte escolhido for móvel, como o capot de um automóvel ou uma folha de árvore, o desenho construído pudesse viajar para longe daqui dando a conhecer o aqui-roubado. Mas porque não sobre o papel?
Porque o papel obriga-me a enquadrar aquilo que eu vejo segundo critérios preestabelecidos pela sua dimensão e pelo seu formato estandardizado. Se eu não desenhar sobre o papel tenho o mundo inteiro para construir o meu desenho, sem limites. A dimensão, a escala a que desenho, escolho-as eu.
O papel antes mesmo do desenho ser desenho, já o predica. O quadrado e o rectângulo querem ser expostos.
O meu desenho é a ponte estreita sob o precipício que me separa das coisas. Só por isso vale a pena desenhar porque desenhar é esticar o corpo e tocar nas coisas, elas mesmas como vividas por mim em mim.
Talvez por isso eu hoje em dia tenha escolhido as palmas das minhas mãos e a minha própria pele como suporte do meu desenho. Sem o papel como suporte ou outra superfície, ganho mais: ganho aquela espécie de sedução que quem
desenha conhece quando se sente o confronto da ponta do lápis ou da esferográfica com a superfície que se ataca. Desenho assim em dobro porque sinto o desenho a acontecer na mão que desenha e na mão que consente o desenho. O meu corpo é o meu princípio e o meu fim, o meu desenho a minha ressurreição.” Pedro A. Janeiro
CV
“O desenho é um objecto. Desenhar é aumentar o mundo.
Lembro-me de uma criança que desenhava no chão com um pincel e água num pátio de cimento afagado. Com água ia dizendo com linhas e manchas pássaros, casas, paisagens; desenhava o que via; inventava mitologias privadas; apontava para o desenho e dizia “Sou eu”. Quando o desenho era grande, subia a uma nespereira sobranceira ao pátio para ver o desenho de cima. Um dia, deslumbrado com o que via enquanto chamava “eu” àquilo que via, caiu e partiu o braço. No dia seguinte a árvore não estava lá: tinha sido cortada rente à terra. Esta imagem sempre me impressionou.
Lembro-me do Piotr: Piotr era um boneco animado polaco, inteligente, mas muito alegre. O Piotr do cão amarelo, que sempre que enfrentava algum perigo lhe aparecia um duende que lhe emprestava “o lápis mágico”. O lápis com que Piotr desenhava no chão tinha a capacidade de materializar tudo o que Piotr desenhava ou desejava: se um par de asas brancas, Ícaro; se um barco à vela, navegador; se uma praia, náufrago.
Lembro-me dos desenhos feitos com o dedo no sujo dos capots dos carros; nos vidros embaciados.
Lembro-me dos desenhos com uma pedra de giz no negro do asfalto; a mão de um homem impressa ou soprada a ocre nas paredes de Lascaux.
Um desenho al vif, entre outras coisas, é uma espécie de fragmento que eu recorto e roubo à realidade.
Desenhar é um roubar lícito: porque aquilo que o desenho rouba, devolve-o ele próprio em dobro, ou em mais, à realidade roubada. O produto do meu saque é mais um objecto no mundo: o meu desenho é o meu roubo e a minha entrega. Digo que tiro, mas sei que dou.
Se desenho sobre um papel, roubo e trago a realidade roubada debaixo do meu braço.
Interessante seria se esse desenho que faço daquilo que digo que vejo fosse abandonado na própria cena do crime; se esse desenho, que é mais um objecto no mundo, fosse alimentar essa realidade que consente ser roubada pelos olhos (para que os outros quando a vissem, a vissem também através de um seu desenho; ou, se a desenhassem, a desenhassem desenhando também o meu desenho) – isto no caso do suporte escolhido ser uma superfície imóvel como uma parede, o asfalto, o vidro de uma janela, etc; ou ainda, de um outro modo, interessante seria, se o suporte escolhido for móvel, como o capot de um automóvel ou uma folha de árvore, o desenho construído pudesse viajar para longe daqui dando a conhecer o aqui-roubado. Mas porque não sobre o papel?
Porque o papel obriga-me a enquadrar aquilo que eu vejo segundo critérios preestabelecidos pela sua dimensão e pelo seu formato estandardizado. Se eu não desenhar sobre o papel tenho o mundo inteiro para construir o meu desenho, sem limites. A dimensão, a escala a que desenho, escolho-as eu.
O papel antes mesmo do desenho ser desenho, já o predica. O quadrado e o rectângulo querem ser expostos.
O meu desenho é a ponte estreita sob o precipício que me separa das coisas. Só por isso vale a pena desenhar porque desenhar é esticar o corpo e tocar nas coisas, elas mesmas como vividas por mim em mim.
Talvez por isso eu hoje em dia tenha escolhido as palmas das minhas mãos e a minha própria pele como suporte do meu desenho. Sem o papel como suporte ou outra superfície, ganho mais: ganho aquela espécie de sedução que quem
desenha conhece quando se sente o confronto da ponta do lápis ou da esferográfica com a superfície que se ataca. Desenho assim em dobro porque sinto o desenho a acontecer na mão que desenha e na mão que consente o desenho. O meu corpo é o meu princípio e o meu fim, o meu desenho a minha ressurreição.” Pedro A. Janeiro
CV